Instituto Fayga Ostrower

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Herdeiros Fayga Ostrower

Uma amizade especial

Texto escrito por Thea Schunemann de Miranda, homenagem aos 90 anos de nascimento de Fayga Ostrower

Conheci Fayga Ostrower em uma recepção na residência do cônsul alemão em Santa Tereza, há cerca de 15 ou 16 anos. Vi aquela figura pequena, magrinha, encantadora em seu casaco de veludo escuro e seus enormes olhos azuis atentos a tudo. Estava só, parada, observava tudo ao seu redor, imersa em meio ao enorme gramado ao lado da piscina gigantesca com vista para a Baía de Guanabara. Pareceu-me uma figura saída das páginas de um livro infantil, onde os personagens sempre têm uma certa magia. Fui falar com ela, sem saber de quem se tratava, atraída apenas pela linda visão.

Conversamos muito, sobre a vida, projetos, sonhos, estranhezas, o porque de estarmos ali, ambas nos sentindo alheias àquele estranho mundo diplomático. No final da noite, a maioria dos convidados já havia se despedido e nós duas continuávamos absortas nessa conversa, que parecia não ter fim. Quando finalmente percebemos que estávamos praticamente sós no jardim, decidimos também partir e então ofereci uma carona a ela. Só então nos apresentamos.

Quase caí para trás, ao saber que se tratava de Fayga Ostrower, a grande dama da gravura brasileira, a autora dos livros que haviam me motivado e me inspirado, quando trabalhei com aulas de artes plásticas para crianças. A artista plástica brasileira que eu mais admirava. Não só por sua obra, mas também por suas idéias, sua conduta ideológica, por sua coragem e lucidez. Fiquei emocionadíssima. Estranhamente ela também já tinha ouvido falar de mim por amigos comuns.

Nesse dia começou uma grande amizade, muito especial. A convivência e o carinho se estendeu à minha família, marido e filhos. Era como se Fayga fosse pessoa de nossa intimidade há muitos e muitos anos. Foram muitos encontros, muitos jantares, algumas visitas a museus, a exposições, e muita, muita conversa da boa.

Em sua última viagem ao exterior, em companhia de sua neta Letícia, eu as encontrei em Berlim, onde passamos uma semana juntas, apreciando a cidade recém-unificada, que parecia querer respirar novos ares, novas possibilidades. Fui com Fayga ao Museu Käthe Kollwitz, que havia sido a maior influência para Fayga em sua fase figurativa, no início de sua carreira. Fomos a uma grande retrospectiva de Gauguin e eu, que já amava esse pintor, me apaixonei ainda mais, guiada pelos olhos de Fayga.

Após o nosso encontro, Fayga e Letícia seguiram viagem até a Espanha, onde encontraram o restante de minha família, Jades e nossos meninos, Kim e Noah, na época ainda crianças.

O Quarteto "Quinteto" alugou um carro e rodou a Espanha, de cidade a cidade, castelo a castelo, museu a museu e Noah, que tinha 6 anos na época, ligava diariamente para Berlim pedindo para que eu o salvasse daquela maratona, pois Fayga e Jades não saíam mais dos museus. Que viagem aquela!!!

E quantas outras viagens Fayga nos proporcionou com suas idéias, reflexões, sua busca pela estética e pelo entendimento do humano.

Quando Fayga faleceu senti a enorme perda da grande amiga, da companheira de leitura de nosso poeta preferido, Rainer Maria Rilke, quando nos encontrávamos para as tarde de leitura em seu apartamento, pois Fayga já estava enxergando muito mal. Senti e sinto enorme falta dessa mulher extraordinária e idealista. Dessa pessoa tão delicada e firme, tão nobre, que só poderia receber mesmo a alcunha de "dama".

Durante o tempo em que tive o privilégio de conviver com ela, Fayga sempre me motivou, me apoiou para que eu realizasse o meu sonho que era o de construir um Centro de Cultura, um espaço onde pessoas pudessem se encontrar para trocar suas vivências, suas idéias, seus desejos. Ela me dizia: Thea faça!!! Realize!!! Não deixe o tempo passar e o sonho se perder!!!

Quando vejo hoje, que de fato estamos construindo nosso Baukurs Cultural, sei que isso se deve muito a inspiração de Fayga, a seu incentivo. Inaugurar justamente esse espaço, nessa rua escondida no coração de Botafogo chamada Rua Goethe, com uma exposição de Fayga, no ano em que completaria 90 anos de vida, é de uma emoção indizível!!!

Noni, sua filha, que herdou da mãe a enorme generosidade, quando soube da criação desse Centro Cultural, nos doou a biblioteca em alemão e inglês que pertencia a Fayga. São os livros que Fayga tanto amava, que tanto a instruíram e inspiraram. O gesto de Noni não só nos alegra e nos honra. Ele também nos traz a responsabilidade de zelar por um patrimônio valioso.

Organizando esse acervo de livros, percebi que ali se encontravam muito mais do que obras interessantes. Os livros que Fayga leu, são livros essenciais. Absolutamente coerente com essa figura humana, que não perdia tempo com superficialidades ou banalidades. E poderia ser diferente?